Tadeu Chiarelli - Carlito, você não é de São Paulo.
Carlito Contini - Sou do interior de São Paulo, de São José do Rio Preto.
TC - E foi em São José que começou seu interesse por arte?
CC - Meu interesse por arte vem desde a infância. Quando eu tinha uns sete anos, meu pai me colocou para estudar piano. No lugar onde eu estudava, tinha uma professora de pintura. Eu não gostava de piano e queria aprender pintura com essa professora que era acadêmica. Acho que meu interesse mais remoto vem dessa época. Eu queria largar o piano e entrar para a pintura. Daí fiz piano mesmo e não pintura.
Mas acho que foi por isso que comecei a desenhar. É uma coisa bem da infância... Um interesse lá atrás. Desenhava não com disciplina, mas era uma coisa que eu gostava, então fazia. Adorava encher as paredes de casa com o que eu fazia: painéis... Depois eu tirava, jogava fora e continuava fazendo.
TC - E com quantos anos você começou a proceder dessa maneira?
CC - Eu tinha 12, 13 anos. Foi quando comecei a criar um sistema: eu fazia os desenhos com um determinado material e uma série deles eu organizava, como uma composição, e os colocava na parede.
TC - E você fazia algum estudo com algum professor?
CC - Não. Depois que “não estudei” com aquela professora, nunca mais quis saber. Parei o piano também.
Por volta dos15 anos comecei a me preocupar em criar certos aspectos no trabalho. Então comprei telas. Eu tinha uma preocupação em aprender: preocupação com o material. Eu estava fazendo, descobrindo...
TC - E você tinha contato com artistas? Como é que era?
CC - Não. Inclusive naquela época eu mudei para uma cidade menor ainda, uma cidadezinha chamada Cajuru, de 20.000 habitantes. Foi quando começou essa disposição. Passei a fazer grafite sobre tela. Preocupava-me com as descobertas, ia sacando com o processo do trabalho. Já era algo mais ou menos disciplinado. Eu podia fazer e era a única coisa que eu tinha interesse em fazer.
TC - E como era? Você tinha contato com as artes plásticas através de revistas, livros, viagens?
CC - Eu lia bastante. O que caía na mão eu lia. Comecei a comprar aquelas coleções da Abril. (Grandes Clássicos da Literatura, Mitologia, Mestres da Pintura, Teatro Vivo).
Mas não via exposições. Não sabia o que estava acontecendo. Nada! E quando eu tinha 17 anos, em 1977, resolvi ter disciplina mesmo. Cajuru era uma cidade que não tinha nada! Eu não tinha nada para fazer e resolvi que pintar era o melhor. Trabalhava todos os dias. Era a única forma de tornar a vida interessante. Ocupava-me fazendo meu trabalho.
Fazia desenhos de observação. Eu morava numa casa que tinha uma visão muito boa, uma visão de montanhas, e comecei a desenhar essas montanhas, a fazer paisagens. Parei de trabalhar só com lápis e comecei com cor, giz pastel. Então, 77 foi o ano em que trabalhei com método. Acho que foi aí que começou um trabalho propriamente dito. Começou a amarrar e desencadeou os estudos. Fazia um trabalho figurativo. Trabalhava cinco dias por semana. Acho que o meu envolvimento veio daí. E, a partir desse período, já sabia que era isso que ia fazer. Era o que eu fazia e ficou como um ofício. Eu nunca mais abandonei, * só nas épocas em que estive em crise que eu não conseguia fazer nada. *
TC - E você tinha idéia de cursar uma faculdade?
CC - Eu tinha idéia de fazer uma faculdade. Engraçado, isso! Eu tinha idéia de fazer uma faculdade e sabia que a pintura já era a minha profissão, porque eu sabia como proceder. Mas como não posso fazer outra coisa a não ser meu trabalho com artes plásticas, resolvi fazer vestibular.
TC - Aí você saiu de Cajuru e foi para uma cidade maior.
CC - Sim. Fui e voltei de Cajuru para Rio Preto várias vezes. Finalmente, fui para Ribeirão Preto, que oferecia um pouco mais.
TC - E como foi seu contato com os artistas de Ribeirão Preto?
CC - Ribeirão foi onde aconteceu meu primeiro contato com um círculo de artistas, porque Rio Preto é uma cidade que tem poucos artistas. É muito limitada, realmente limitada.
Ribeirão já tem um pouco mais de espaço. Foi lá que comecei a ter aulas com o Pedro Manoel Gismondi. Ele acompanhava meu trabalho.
TC - Você fazia um curso com ele?
CC - Não era um curso prático de pintura, nem nada. Ele só comentava. Eu nunca tive curso de pintura. Tinha um processo... Meu trabalho já tinha uma certa base. Eram aulas teóricas, um trabalho de crítica. A gente conversava, ele criticava e me passava as informações que tinha.
TC - E você teve contato com Vaccarini também?
CC - Sim, e com outros artistas também. Tinha uma galeria. Eu ia sempre naquela galeria ver exposições e conversar.
Eu continuei trabalhando e deu uma mudada no meu trabalho. Até então, eu era figurativo, fazia paisagens. Lá mudei para um tipo de produção com assuntos que até hoje continuam no meu trabalho: a questão do símbolo, da síntese da figura.
TC - Isso se deu em Ribeirão Preto?
CC - É. A figura de forma sintética.
TC - Você teria alguma explicação para isso?
CC - Não. Estava no meu processo; já estava no âmago do meu trabalho. O que aconteceu foi isso: não vem de fora. Acho que já estava se conduzindo.
Eu lembro que antes de eu me mudar para Ribeirão, as últimas paisagens davam sinais de que já precisavam mudar. Eu já estava vindo mais a São Paulo ver exposições, começava a me interessar ainda mais. Mas, mesmo assim, meu trabalho era de formação, de estudos. Daí comecei a trabalhar com signos, com a figura sintetizada.
TC - E como foi vista essa mudança de produção no círculo que você freqüentava?
CC - Não mostrava para um círculo. Eu tinha aulas com o Pedro e ele comentava. Meu trabalho naquela época era muito eclético. Sentia que precisava amarrar meu repertório.
TC - Você chegou a fazer exposição naquele período?
CC - Cheguei a mostrar em salões e também fiz uma individual em Ribeirão Preto.
TC - E aí você veio para São Paulo...
CC - Vim. Isso foi no final de 1980. Eu tinha prestado vestibular e vim fazer a FAAP. Bem, era uma forma de vir para São Paulo.
TC - Por quê?
CC - Tem isso: você tem que ter uma coisa mais oficial para mudar de cidade. Então, a faculdade era algo oficial...
TC - Você não teve problemas com a família por fazer artes plásticas?
CC - Tive, sempre tem. É um trabalho que aparentemente não tem segurança alguma.
Eu me sinto inseguro. Eu tenho uma insegurança... É uma coisa que você não define nunca – insegurança com o processo, com o trabalho... Existe uma tensão constante.
A família também. No começo meus pais viam essa atividade como uma diversão, e eu tratava como ofício. Perguntavam como eu ia ganhar dinheiro. Fazer a escola de artes plásticas era um problema, também. Eles preferiam que eu fizesse arquitetura.
Hoje é mais tranqüilo – é inevitável. É minha profissão, faço isso mesmo. Mas nunca houve um impedimento, tipo “Não faz!”. Eles não super estimularam, devido à dificuldade de sobrevivência da carreira.
TC - E aqui em São Paulo, como foi? Você chegou e... FAAP?
CC - [Eu esperava muitas coisas de uma escola de arte. Eu sempre fui autodidata, ficava achando as coisas sozinho. Não me adaptei, tinha outras expectativas.
Com um processo de trabalho em desenvolvimento, era difícil me sintonizar com o que a faculdade oferecia. Mas, ao mesmo tempo, eu achava necessário, porque havia um contato com pessoas da minha idade que também trabalhavam e isso era muito bom. Fiz amizades, tinha amigos e gostava disso. Comecei a conhecê-los através do espaço.
Fui mal nas matérias, tive discussões com os professores. Colocava-me, mas me sentia inseguro, então passei a agir de forma estranha].
TC - Você acha que havia muita exigência na escola?
CC - Não é uma questão de exigência. Eu não conseguia encaixar meu processo com o dela. E, também, sempre se espera um monte de coisas... * Vim para São Paulo, fazer uma escola de arte que, no fim, não conduziu ao que eu esperava.
TC - E quais eram as expectativas que você tinha em relação à FAAP?
CC - Não sei, achei que ia ser tratado como indivíduo e não fui. Sempre teve este lance para mim: o meu processo todo foi sobre minhas necessidades e, de repente, eu estava lá e tinha que fazer um leque de coisas. Era formal, aprendi coisas sem interesse algum. Tive problemas. * Deu um nó na minha cabeça. Eu já tinha feito algumas performances no interior e * comecei a fazê-las aqui.
TC - E você chamava essas atividades de performances?
CC - Não. Eu nem sabia o que era performance. Era algo que eu fazia e gostava de fazer. Então vi alguém fazendo uma e fiquei realmente impressionado, e descobri que chamavam aquilo de performance. Descobri que aquilo que eu já fazia era uma linha determinada de trabalho, onde existiam certos conceitos.
Tinha um amigo – o poeta Roberto Soares –, e começamos a fazer performances juntos. Isto foi em 1981. (A faculdade já não me interessava e eu era bem indisciplinado; incomodavam-me certos professores). Enlouquecíamos e eu achava as ações muito interessantes. Fazíamos na rua, em espaços para espetáculos. Fiz uma na FAAP e em outros lugares. Nosso comportamento, a forma como nos vestíamos, tudo passou a ser elementos que usávamos cotidianamente para provocar o espaço e agir. Criamos um “comportamento tensão”. Havia os trabalhos elaborados, estruturados e também os que aconteciam por acaso, conforme a deixa do dia-a-dia. Foi uma época louca, que poucas pessoas admitiam nos entender. Acabou ficando pesado para eu segurar o refluxo da onda. Fiquei doente, tive problemas e me afastei de São Paulo e da FAAP.
TC - No processo de performances, você deixou o trabalho que vinha desenvolvendo anteriormente?
CC - Não. Eu fazia meu trabalho e a performance ficou sendo conseqüência dele. Tem um texto na revista Arte São Paulo que explica isso. Todas as preocupações que eu tinha com o desenho extrapolei na performance. Mudou... Em vez de eu trabalhar com desenho, *minha atenção voltou-se para a performance.[Depois dessa época passei um período super difícil. Fiquei meio ao léu. E continuei trabalhando. Fiquei no interior durante esse tempo, e em 1983 voltei para São Paulo e para a faculdade, que era como meu emprego. E tem um lado legal na FAAP, apesar de tudo].
TC - Como foram as exposições aqui em São Paulo? Você começou a fazer performance, mas tinha interesse em fazer exposições também?
CC - Eu fazia exposições, só que eram underground. Naquela época eu fazia coisas por aí, não me preocupava muito.
TC - E aí você deve ter reassumido as exposições.
CC - É. Bom, eu não parei de trabalhar. Logo que voltei fiz uma exposição com um grupo que estava revendo a Art Brut.
TC - Onde foi essa exposição?
CC - Foi no Paço das Artes, no começo de 83. Era uma * coletiva com muitas pessoas.
TC - Na Bienal Internacional de 1981 houve uma exposição, chamada “Arte Incomum”, que tratava dessa questão.
CC - Isso, foi em 81.
TC - A sua foi depois, não foi?
CC - Foi. Daí fui fazendo outras exposições, algumas coletivas. Também em 83 fiz a “Sessão Corrida”, no Centro Cultural.
TC - O que você acha da “Sessão Corrida”, já que expôs lá?
CC - Eu acho muito corrida. Se a pessoa não vai ao vernissage, ela não vê nada. Tem o grupo de amigos que, se passa por lá, vê. Mas eu, por exemplo, fui a três dessas sessões. Tem isso: às vezes havia uns trabalhos expostos que eu queria ver, mas em três dias não dava para ir lá.
Então acho que deveria ser menos rápida – no mínimo uma semana para cada exposição. No fim você fica até sem ter o retorno *, o trabalho fica lá no meio e se perde. As últimas exposições que eu fiz achei, meio, sabe... Hoje estou assim: acho melhor não expor, do que expor e o trabalho se perder. Não resolve, não fica claro *.
TC - E aquela exposição na “Arte Aplicada”, “Os Novíssimos”? Como você encarou sua participação?
CC - Não sei, acho que foi uma salada. A organizadora quis pegar o bonde dos “novíssimos”, o que era uma grande besteira, essa explosão de novos e tal.
Esse conceito de novo é muito... Se você tem 22 anos você é novo, mas seu trabalho pode ser velho. E o que aconteceu foi justamente isso: tinham pessoas que estavam expondo lá e que não eram “novos”. Ou, então, pessoas que já trabalhavam há muito tempo. * Eu me questionei muitas vezes antes de expor, mas... Você tem que expor, tem que expor... A oportunidade...
É difícil descartar os espaços que surgem. Bem, mostrei meu trabalho. Mas em termos de postura, de conceito, achei a exposição ruim. O nome foi péssimo. Poderia ter tido mais critério. Mas como é uma galeria voltada para decoração...
TC - Fora de São Paulo, você participou de alguma exposição?
CC - Sim, participei de salões. Mas raramente eu mando.
TC - Voltando um pouco, você falou que sofreu aquela guinada em Ribeirão Preto, com a síntese de imagens. Esse processo continuou?
CC - Aquela guinada foi um ponto para o desenvolvimento do meu trabalho. Está presente até hoje. Algumas preocupações foram se desenvolvendo e hoje são outras histórias. Já estão intrincados com outros elementos. Mas foi a partir dali. O processo todo é um amálgama.
TC - No início você falou sobre seus temas plásticos. Queria que você falasse um pouco mais sobre isso.
CC - Meu trabalho sempre foi eclético e era muito mais. De repente eu fazia isso como uma pesquisa e depois de certo tempo, a partir de 81, comecei a sentir necessidade de desenvolver mais certos aspectos que apareciam no trabalho. Passei a aprofundar-me neles e a desenvolver séries.
TC - Mas o detonador de uma série seria, por exemplo, é uma imagem?
CC - Pode ser um trabalho, um determinado aspecto que me interessa, um determinado procedimento que aparece por acaso e, também, pode ser uma certa imagem.
TC - Como assim?
CC - Estou fazendo um desenho, por exemplo. Ele toma um aspecto, uma determinada textura. Os elementos plásticos se organizam de uma forma que é uma sacada, uma descoberta. Daí, a partir dela, desenvolvo suas possibilidades. Às vezes, a partir de um quadro, passo a desenvolver uma série.
Hoje eu trabalho assim, em série, e geralmente os trabalhos extrapolam os princípios da origem. Para mim é esse o aspecto. Às vezes desenvolvo um tema que é literário, político, mas eles obedecem sempre à forma.
TC - Os símbolos que você cria, vêm desses temas literários?
CC - É uma coisa mais intrincada. A maneira como eles tomam forma, como eles tomam vida, é plástico. Agora, a expressão deles – se é uma bolinha, um rosto triste, um fiozinho – isso quem vai determinar é o assunto. A relação dos elementos enquanto personagens, objetos, signos.
TC - E não o assunto plástico.
CC - Tudo. Tipo assim: “A Sra. G. e seus três amantes”. Isso foi surgindo, se fechou assim. Se ela é uma mulher ali no canto, foram vários fatores lógicos que me levaram a colocá-la ali, daquela forma.
TC - Surge no processo.
CC - Durante o processo é que determino à forma, o assunto, a poética do trabalho: “Ah! Então isso aqui também se relaciona com isso!” É matemático. Porque eu vou ouvindo o trabalho, entendeu? Eu tenho primeiro uma idéia, depois ela se submete à realidade do quadro.
Eu penso assim: “Bom, esse trabalho pode ser... ‘A Morte da Grávida’, ou algo assim”. Ou, pode ser: “Esse trabalho vai começar por um retângulo preto no meio e uma oval rosa”. De um jeito ou de outro, é a mesma coisa.
TC - Tanto o tema literário, como o tema plástico?
CC - Isso. Mas tem sempre um processo: primeiro eu crio uma textura. Começo com uma confusão. Eu risco, trabalho com sobreposições, faço qualquer coisa. Depois apago tudo aquilo e deixo em branco. Mas já vai começando a aparecer certos fantasmas. Então não tem aquela coisa de eu ficar olhando para a tela branca, pensando o que eu vou por. Não tem nada disso no começo, porque o meu branco já não é mais um branco. Já tem o gesto, mil coisas ali. Eu olho muito e começo a ler os fantasmas, as figuras. Às vezes essas configurações que aparecem são sutis. O branco manchado pode determinar um assunto, uma figura, um retângulo branco em que vou colocar uma transparência. O que faço é ir descobrindo o que o trabalho vai me oferecendo.
TC - Ele o informa.
CC - Ele vai me informando e vou ouvindo. Mas esse descobrir não é só “descobrir”. Tem um processo matemático. Você vai organizando essas formas e suas idéias. Tem a triagem: quero ou não quero. Tem a forma poética do trabalho. As coisas se amarram. O que as determina é um monte de coisas. De repente uma espada, mas não é uma espada – é uma diagonal que deve ser colocada e depois formou uma espada. Mas ao mesmo tempo, o assunto se fecha de determinada forma e nem eu sei como foi fechado.
Quando termino o trabalho, eu o leio de mil maneiras. Então, aqueles personagens podem significar isso, aquilo. Mas o grande interesse é que todas as formas estejam organizadas no espaço, e que haja movimento, atmosfera. Algo transparente, difícil de ser definido. É um trabalho construtivo, porém orgânico. Na verdade, existe uma preocupação “construtiva”.
TC - Continue falando desse processo.
CC - É assim: esses últimos trabalhos que estou fazendo são os números. Eu escrevo números, números e números no trabalho, no suporte branco. Isso forma uma textura. Mas também é um assunto. Daí escolho o número da extrema direita, da extrema esquerda e risco um “X”. Vou criando tensões.
Assim: risquei 7, 5 e 7. E eu imagino esses números, imagino significados para eles, sabe? E já começa um assunto, que é um assunto literário, mas que pouco interessa. É um assunto que vai ser desenvolvido a partir daquela textura, e dos significados, e depois pinto tudo de branco. E ficam aqueles fantasmas que lhe falei: olho o trabalho e vejo o que estou vendo nessas manchas. É como ficar olhando para as nuvens e vendo o que elas formam, entendeu? Daí começo a selecionar formas. Esse processo de sobrepor, aparecer, tirar e por, vai me dando um mapeamento, vou mapeando e fazendo surgir. Na verdade é um trabalho de emersão. Vou criando um aglomerado de coisas que vão emergindo. Essa imagem que fica por cima é a imagem burilada dentro de todo esse amálgama que foi lapidado.
Esses últimos trabalhos são limpos, tanto que você não vê os números, mas eles estão atrás e são convenientes. Mas os outros trabalhos traziam os números. Transparecia todo aquele volume de matéria no fundo. E quando eu colocava a última seqüência de símbolos brancos, a última figuração branca, a trama já fazia parte da figuração definitiva. Eu tinha o trabalho de trazer aquelas coisas que estavam no fundo, já como texturas e imagens secundárias, para frente.
TC - Algumas pessoas percebem uma afinidade do seu trabalho com o de A R. Penck. Como são suas relações com as imagens de outros artistas?
CC - Tomei contato com a obra de Penck em 1983. Em 80 eu tinha um trabalho que era muito mais Penck que esse atual. Eu adorei conhecer o trabalho dele. E foi engraçado, porque eu vinha fazendo um trabalho e, de repente, o trabalho dele – não a postura ou conceito – fazia uma ponte com o meu. São afinidades.
Faz alguns anos li um livro sobre arte rupestre e fiquei impressionado com o assunto que começou a se incorporar no meu trabalho. Esse contato com a arte rupestre também coincidiu com uma viagem a Ouro Preto onde vi lindas pedras. A partir daí iniciei uma série de pinturas, em que copiava a matéria das pedras e pintava só com preto. Era uma coisa crua, uma imagem crua. Não tive influência direta do Penck. Eu o conheci depois de ter desenvolvido esses meus trabalhos. Mas sem dúvida existe afinidade, e sincronia também.
Sempre se tem as influências. Trabalhos que eu adorava e adoro são os de Miró, Klee, Kandinsky, Tápies e muitos outros.
TC - O seu processo criativo me lembrou muito alguns depoimentos de Miró.
CC - Sempre gostei de trabalhos de crianças. Quando conheci a Art Brut, achei-a fantástica. Então tem influências, tem uma gama imensa de influências. Quando você está trabalhando, isso funciona na sua cabeça não sei de que maneira. Mas acho que a gente está jogando com isso o tempo inteiro. Quando você está trabalhando, tudo que você já viu, todo esse repertório, se disponibiliza nas suas resoluções.
TC - Na FAAP você deve ter tido professores ligados à tendência conceitual. Como foi a influência desses artistas sobre você, se é que existiu alguma?
CC - Cheguei a ter aula com poucos. Para mim não foi forte.
TC - E esse tipo de produção? Nunca lhe chamou a atenção?
CC - Gosto de ver, mas pouco me influenciou. Porque eu já tinha estabelecido as minhas preocupações.
TC - É que você chega à FAAP já com um caminho estabelecido e você não modifica seus procedimentos, influenciado por professores, etc.
CC - O curso não me influenciou. O que me influenciou * foram as relações com as pessoas que encontrei. São Paulo me influenciou muito. Antes de vir para cá, quase não via exposições. O que eu conhecia eram livros. Aqui comecei a ir a museus, comecei a ver exposições, ter contato com artistas. Isso tudo me influenciou. Tudo influencia. Às vezes vou ver uma exposição nova. Vejo o trabalho, vejo uma determinada coisa e bate. Acabo incorporando, vai aparecer no meu trabalho de alguma forma, vai acrescentar meu trabalho. Quero dizer, passa por um filtro, mas eu não sei quando vai aparecer, nem como, mas tudo aparece.
TC - Você faz poucas exposições. Como é o contato com o público, com o mercado? Você faz peregrinação pelas galerias, você vende?
CC - Fiz muito pouca. Teve mês, em 83, que resolvi que precisava mostrar meu trabalho e comecei a sair. Mas não deu certo.
Eu estou assim: importo-me mais com meu trabalho. E acho que tudo o que fiz até hoje é construção de repertório, pois comecei a me disciplinar a poucos anos. Não trabalho com material resistente, o que me preocupa, pois não quero que minhas imagens pereçam. * Trabalho com material barato, porque me interessa muito mais ficar trabalhando, ampliando repertório. É um tempo de formação, de maturação.
É gozado isso, porque você trabalha com material mais barato e esse material provoca certos aspectos, certos tipos de resoluções que se estivesse com materiais caros, não teria isso, e talvez ficasse, com certas preocupações, como gastar muito, desperdiçar. Esse processo de ficar sobrepondo imagens, por exemplo. Às vezes gasto dois litros de acrílico industrial num trabalho. Então é legal trabalhar com Metalatex sobre papel, porque é barato e me permite trabalhar bastante.
Eu não tenho saído para procurar exposição. Ando meio calmo em relação a isso. Mesmo porque o mercado, o circuito está meio confuso, não é? Principalmente com relação a artista jovem.
TC - Como você está vendo essa questão?
CC - Em 83 teve aquela super explosão: “Queremos artistas jovens!” Acho que carecia artista jovem e calhou de algumas pessoas fazerem exposições e entrarem. No caso, o mercado os adotou. Gosto de muitos artistas que estão aí. Acho que tem bons artistas. Mas acho que teve toda essa festa. O que é festivo no mercado não tem muito a ver. Foi criada uma coisa em cima de artista jovem, uma certa solicitação maniqueísta.
TC - A grande coisa era ser jovem.
CC - Sim. E uma certa urgência. Acho que isso prejudicou alguns artistas; ter muita solicitação que eles não podiam encaixar no repertório deles. Eu, por exemplo, se tivesse exposto na Galeria São Paulo, não sei como estaria hoje. Ter muita solicitação sobre um repertório firmado ou não, pode ser prejudicial. Repertório é algo super lento de se formar. O processo de trabalho é lento. Mesmo que você trabalhe muito, que você faça um trabalho por dia, é lento. É algo que tem que ser sedimentado. Acho que essa urgência prejudicou. De repente o artista se vê solicitado, e tem que ficar repetindo fórmulas. Se tivesse ido com mais calma... Tanto é que deu uma parada. Foi um processo super rápido. Em dois anos aconteceu tudo isso, teve esse “boom” do artista jovem, teve a Bienal... E vamos encher o mundo de quadros, quilômetros de pinturas...
TC - E você acha que esse “boom” acabou?
CC - Está mais calmo. Acho que 86 está bem mais calmo. Começou em 84, não foi? Inclusive as pessoas que entraram no circuito estão agora revendo mais os conceitos. Acho que estão trabalhando com mais calma.
TC - Você acha que está havendo um refluxo?
CC - Houve um “vamos refletir” sobre esses dois anos de “boom” da arte jovem, * sobre o que está no circuito. Vamos refletir sobre nossos trabalhos, porque não pode ser apenas uma fábrica de imagens. Por outro lado, acho que tem uma época em que você pode ser solicitado, porque você vai estar trabalhando sobre um repertório maduro.
Estou meio insatisfeito agora, porque tenho um monte de projetos em casa, guardados. Estou trabalhando com um material que já não está me satisfazendo mais. Estou com pouco espaço. Quero que haja um tempo em que flua o que produzo de maneira mais objetiva.
TC - Você acha que está havendo um refluxo?
CC - Houve um “vamos refletir” sobre esses dois anos de “boom” da arte jovem, * sobre o que está no circuito. Vamos refletir sobre nossos trabalhos, porque não pode ser apenas uma fábrica de imagens. Por outro lado, acho que tem uma época em que você pode ser solicitado, porque você vai estar trabalhando sobre um repertório maduro.
Estou meio insatisfeito agora, porque tenho um monte de projetos em casa, guardados. Estou trabalhando com um material que já não está me satisfazendo mais. Estou com pouco espaço. Quero que haja um tempo em que flua o que produzo de maneira mais objetiva.
TC - Você está se referindo a uma solicitação de mercado?
CC - De exposições, de vendas também, para poder trabalhar com um material melhor. Porque não quero ficar trabalhando do jeito que estou trabalhando, para sempre. Trabalho um mês para fazer uma pintura. Eu poderia trabalhar com mais intensidade e com as mesmas posturas, se tivesse onde expor meus trabalhos. Trabalhar 8 e não 4 horas.
Acho que trabalhar sem ter um destino dispersa um pouco, ou fica mais lento, entendeu? Talvez seja até bom. Não sei... Estou sentindo necessidade de expor logo, como tive necessidade de não querer expor.
TC - Mesmo sem fazer exposições, você tem vendido alguma coisa?
CC - Meu pai fornece o básico. Tenho que vender para a sustentação do meu trabalho. O material, sabe, o pincel dura pouco. Eu tenho que estar sempre renovando material. Eu vendo pouco. O ano passado passei 7 meses ganhando dinheiro com trabalho. Prefiro vender à prestação porque assim recebo como se fosse um salário. Vendo para as pessoas que conhecem meu trabalho, um círculo pequeno de pessoas.
TC - Que tipo de pessoas?
CC - É engraçado, são jovenzíssimos. Geralmente são pessoas mais novas do que eu. Tenho amigas de 18 anos que compram. Gente da minha faixa etária para baixo.
TC - Não tem colecionador?
CC - Ninguém, só amigos. É assim: um amigo vem aqui ver meu trabalho, conta para outro, o outro vem ver e alguns compram.
TC - Essas pessoas têm interesse em comprar seu trabalho especificamente ou existe um interesse em formar uma coleção mais ampla?
CC - Não sei. Acho que têm empatia com o trabalho, o que é fundamental. Acho que as pessoas querem ter um trabalho na casa por gostar dele. Acho que existe tudo, e futuramente eles quererem comprar arte também.
Às vezes vendo para pessoas que não sei quem são. Então vendo um trabalho e não sei onde é que está, para onde foi. E gosto disso. Vender é uma coisa que me estimula.
TC - E de alguma maneira você está fazendo seu público.
CC - É. Meus amigos gostam do meu trabalho. Quem vê meu trabalho mesmo são poucos amigos que vêm aqui em casa. E sempre mostro a eles.
TC - Finalizando, gostaria de saber uma coisa. Nos trabalhos anteriores você usava cores e nos atuais elas desaparecem. Por que isso?
CC - Não sei porque. Fui tirando a cor. Tem muita coisa que estou pensando agora: eu fazia paisagens, trabalhava com muita cor. No começo eu achava um desafio trabalhar com cor. Trabalhei com técnica mista. Agora acho um desafio partir para a pintura de novo. Nós vamos criando problemas novos. Eu já pintei, mas a pintura exige muito aprendizado. Eu trabalhei com a cor até um ponto e disse: “Bom, sei trabalhar com cor”. Quero dizer, sei entre aspas. Consegui trabalhar com cor e daí fui reduzindo porque fiquei interessado em determinados aspectos, em determinado clima de trabalho: uma sutileza com poucas cores. Fui tirando até chegar nesses trabalhos só com preto, branco e a gama intermediária deles. E a textura, no caso. Esses trabalhos mais recentes não têm cor porque os elementos que mais me interessam são a composição, as formas, o assunto e a textura, de maneira essencial. Deixei a cor, mas estou trabalhando com a textura, com as qualidades de superfície. Mas posso voltar à cor mais tarde, quando começar outra série.